O gramado da Arena de Pernambuco, em São Lourenço da Mata, recebeu na manhã deste domingo, jogadores que vieram de muito longe para, com a bola nos pés, desenhar um recado ao mundo. Marcando de vez a mensagem que carregam em suas histórias de vida. A causa levantada pela “Copa dos Refugiados e Imigrantes Brasil 2019” foi capaz de deixar o futebol como segundo plano no estádio. Mesmo com torcida nas arquibancadas, do apito inicial ao fim das disputas (que tinham dois tempos de 15 minutos e cinco minutos de intervalo), o resultado numérico era o que menos importava. Para todos, o recado passado além do campo valia mais que qualquer gol.
Senegal, Cabo Verde, Angola e Venezuela foram as quatro seleções representadas em campo. Entre o quarteto, apenas Venezuela e Senegal eram compostas por nativos. As outras duas mesclavam com imigrantes e refugiados de outras cinco nações: Haiti, Guiné Bissau, Colômbia, Israel e Benin.
O primeiro jogo foi entre as equipes da Angola e Senegal, que ficaram no 0 a 0 durante o tempo normal e estenderam o empate, dessa vez em 3 a 3, nos cinco primeiros lances da marca penal. A diferença veio na sétima batida. Quando a Angola perdeu e Senegal marcou. Assim, ficou conhecida a primeira finalista da manhã.
A segunda partida foi por conta das equipes de Cabo Verde e Venezuela. Onde, a primeira, dominou o jogo e marcou duas vezes, confirmando sua presença no duelo final, diante do Senegal.
No confronto decisivo entre os vencedores de cada jogo, o vencedor garantia uma vaga na fase nacional da competição, que será realizada no Estádio do Maracanã (RJ), em novembro. Os outros representantes regionais serão conhecidos nos jogos de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Curitiba e Porto Alegre. Mas, antes de descobrir quem levaria o troféu, um amistoso entrou em cena. Num ar descontraído, membros da organização do evento e personalidades locais desfilaram suas chuteiras no tapete verde. Entre elas, o representante pernambucano da Defensoria Pública da União, André Carneiro, o deputado federal, Túlio Gadêlha, os ex-jogadores, Kuki e Zé do Carmo e o diretor geral da Arena, Kleber Borges.
O relógio correu e o sol continuava castigando na Arena de Pernambuco, quando o apito inicial para Senegal e Cabo Verde aconteceu. Era decisão nas quatro linhas. Repetindo o placar e o cargo, a equipe do Cabo Verde foi campeã, por 2 a 0. O primeiro passo para o Maracanã ficou na conta do gol de Derciliano Cruz, cabo-verdense que mora no Brasil ha três anos e meio. “Dá para conhecer um pouquinho da cultura de cada um. E a gente está aqui, através do futebol, mostrando que a gente tem o nosso espaço aqui no Brasil”, declarou.
Assegurando a imigração enquanto um direito de qualquer cidadão e exemplificando a maioria dos casos de refugiados com a perseguição, o presidente da África do Coração, Jean Katumba, reforçou a dificuldade que a língua portuguesa traz, muitas vezes, na vida dos que vêm de fora. E comentou a articulação usada para todos se entenderem no evento. “O projeto tenta usar uma linguagem universal (futebol), que todo mundo entende, para integrar as pessoas que não têm voz.”
UM JOGO, VÁRIAS HISTÓRIAS
Entre as histórias presentes no evento, está a de Jesus Daniel Arzola, de 15 anos. Dentro de campo, ele atuou como lateral da Venezuela, seu país de origem. E sob o comando do técnico Cesar Bería, o garoto defendeu a equipe no segundo tempo.
Jesus integra uma família de sete pessoas. Ele, a mãe, Milagros del Carmen, o pai, Divis Maudis Arzola e mais três irmãos e uma irmã. Divis Moises Arzola, Mileidis de Los Angeles, Enelis de Nazaret e Daniela Maudismar. Na realidade venezuelana, apesar da difícil situação financeira, a família ainda tinha esperanças de permanecer no país. No mesmo estado em que moravam, Bolívar. Foi quando mudaram apenas de cidade. O destino era El Dorado. Imersos numa situação sem muitas mudanças, decidiram vir ao Brasil. O destino estava concreto, mas o caminho era repleto de instabilidades. O calendário marcava abril de 2018 quando a família cruzava a demarcação da Venezuela com o estado brasileiro de Roraima. Na primeira noite, tiveram que dormir na própria fronteira para regularização dos documentos. Após isso, andaram três noites até que chegaram à capital Boa Vista, onde foram abrigados por uma família de indígenas. Depois da carona oferecida pelos “donos da casa”, era hora de todos os integrantes da família se reencontrarem. Na rodoviária, todos juntos outra vez. Inclusive, para dormir por duas noites. Após esses primeiros dias, a família recebeu acolhida da ONU. E assim foram a mais nova família na capital Boa Vista.
Passados seis meses, vieram para Igarassu, em solo pernambucano. Onde foram os primeiros venezuelanos a integrar a organização “Aldeias infantis SOS Brasil”. Morando lá até hoje, a família permanece esperançosa, o que mudou foi a perspectiva. Agora, Jesus é estudante do primeiro ano do Ensino Médio. O pai, está em processo seletivo de uma empresa multinacional. A mãe está desempregada, mas buscando oportunidades no mercado. A irmã, com um ano de idade. E os outros irmãos, também abraçados com os estudos. Emocionado, o garoto Jesus lembrou do seu país de origem, e de quando a família fazia rodízio nas alimentações. Mas, em vez de fartura, esse era ocasionado pela falta. “Tinha dias que a gente tomava o café da manhã, e não comia o almoço, mas depois jantava.”
A emoção não ficou só nas lembranças de lá. Acostumando-se com a nova realidade aqui, neste domingo o garoto realizou mais um sonho. “Eu me senti bem. Porque, eu sempre quis jogar num campo assim. E jogar bem. O resultado não foi bom, mas cada um fez sua parte.”, descreveu os minutos que passou em campo.
O coordenador da organização “Aldeias Infantis SOS Brasil”, Carlos Roberto, de 49 anos, é um dos responsáveis pela rotina dos venezuelanos que moram em Igarassu. Num condomínio com 10 casas, com cada uma abrigando entre duas e três famílias, está um dos redutos de venezuelanos em Pernambuco. É de lá que tentam refazer seus caminhos. Em 2018, 69 venezuelanos estavam sob o comando da organização, e gradativamente este número aumenta até os dias de hoje. Na metade deste ano, em torno de 30 famílias venezuelanas estavam abrigadas lá. Atualmente, o espaço funciona com a recepção, acolhida e projeção dessas pessoas para o mercado de trabalho. Para assim, disponibilizar o espaço para novos membros. “A gente tem a ideia de um mundo sem fronteiras. O que nos divide é a cultura, língua, etnia, gastronomia e a música. Mas, tirando toda essa realidade, que é cultural e faz parte da natureza existencial do indivíduo, somos todos seres humanos. Temos raiva, alegria, tristeza.”, disse o coordenador, que relembrou ainda um episódio em uma das chegadas das famílias: “Quando o ônibus entrou na cidade de Igarassu, tiveram pessoas na rua que aplaudiram. É uma cena surreal, vindo de uma realidade que a gente vive, de um mundo materialista e individualista.”
Entre os desafios de adaptação que refugiados e imigrantes se deparam em um novo país está a comunicação. E o aprendizado de um novo idioma. A professora de língua espanhola, Bárbara Warner, de 21 anos, foi uma das voluntárias no evento. Ela reforça a importância do bem-estar também no sentido da fala. “Tem jogadores que estão aqui há alguns anos e já se interaram. Já falam ‘visse’, inclusive. Esse acolhimento é essencial para formação da identidade do outro. Eu olho o outro e também me enxergo. Isso é interculturalidade.”